quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Pense duas vezes antes de virar cientista


O melhor motivo para querer se tornar cientista é ter uma curiosidade infinita
Não fazemos ciência para salvarmos o mundo, enriquecermos ou ficarmos famosos (apesar de essas coisas poderem acontecer). O dia a dia do cientista é muito trabalhoso e as recompensas são muito mais intelectuais do que materiais. Lidamos com frustração o tempo todo, na forma de experimentos que dão errado ou burocracias paralisantes, entre outras mazelas. Portanto, só deve querer virar um cientista profissional a pessoa que tem um desejo quase obsessivo de fazer e responder perguntas. A melhor motivação para desenvolver um projeto é o projeto em si. Um cientista também passa a vida toda estudando, seja em cursos ou por conta própria, então o gosto pela leitura é um requisito essencial na carreira.
A jornada para se tornar cientista é dura e não tem garantias
Fora os 15 anos nos ensinos infantil, fundamental e médio, é preciso investir no mínimo mais 10 anos da sua vida adulta (graduação + mestrado + doutorado) para se tornar um cientista e começar de fato sua carreira independente, fora das asas de um orientador, sendo capaz de ter o seu próprio grupo de pesquisa, conseguir verbas, orientar alunos etc. Preste atenção: esse é o tempo mínimo! Na prática, como há cada vez mais e mais doutores sendo jogados no mercado todos os anos e o número de empregos para cientistas não cresce proporcionalmente, a competição está cada vez mais brutal. Isso é especialmente crítico nos melhores centros da ciência brasileira e mundial, para onde a maioria quer ir.
Assim, torna-se necessário investir também em alguns anos de pós-doutorado, sem estabilidade, a fim de se ter uma chance melhor de conseguir um emprego permanente como professor universitário ou pesquisador da indústria. Na Europa ocidental, por exemplo, o tempo médio como pós-doutor até conseguir um emprego estável gira em torno de 10 anos! Ou seja, estamos falando de 10 anos de formação de cientista e mais 10 anos pulando de bolsa em bolsa (ou renovando contratos temporários): 20 anos de investimento! Na Alemanha, por exemplo, apenas 5% dos doutores formados conseguem se estabelecer na Academia e mais uns outros 10% conseguem um lugar na indústria; o resto tem que mudar de carreira. No Brasil, os empregos para cientistas na indústria são muito mais escassos do que nos países desenvolvidos, então a única opção concreta que um aspirante a cientista tem de continuar nessa carreira é entrar na universidade (aí você terá que dar aulas também, mesmo que essa não seja sua vocação).
Uma coisa é certa: há muito mais vagas para professores universitários no Brasil do que em outros países, mesmo os desenvolvidos. Mas as condições de trabalho por aqui variam enormemente entre as regiões ou mesmo entre universidades de uma mesma região; então conseguir um emprego não significa necessariamente que você vai continuar tendo condições de fazer pesquisas minimamente relevantes.
É importante deixar claro também que a fase de pós-doutorado é crítica, porque o cientista que chega nela já está tão especializado na pesquisa acadêmica e, mais especificamente, na área e tema que escolheu, que sua empregabilidade geral despenca: ele não tem boas chances de conseguir um emprego que não seja acadêmico e dentro da sua especialidade. Se a conquista do tão sonhado emprego estável como cientista não se concretiza, o sujeito se vê num frustrante limbo, onde tem que decidir entre investir mais alguns anos sem garantias de sucesso ou largar a ciência e começar quase do zero em outra carreira. Se a jornada der certo, você conseguirá seu primeiro “emprego de verdade” (como servidor público ou celetista, na universidade ou na indústria) só depois dos 30; se ela não der certo, a coisa ficará bem complicada, ainda mais se você tiver família para sustentar.
No caso dos cientistas com família, ainda deve-se levar em conta que quase sempre é necessário mudar de cidade, estado ou país pelo menos algumas vezes, porque as oportunidades nem sempre aparecem onde a gente quer; isso costuma ser altamente estressante para cônjuges e filhos. Por isso, antes de embarcar nessa aventura, pense bem se será capaz de resistir a tanta pressão e frustração, lutando por um objetivo maior a muitos e muitos anos de distância.
Aqui neste ponto, pare, respire fundo e reflita fazer ciencia ou vender arte na praiaFonte: A Vida de Biólogo.
Não perca as suas metas de vista
Seguir a manada é o que faz a maioria das pessoas, mas este não deve ser o comportamento de um cientista. O que é bom para um colega que você admira pode não ser bom para você. Como diz o provérbio, quem anda apenas por caminhos conhecidos só vai aonde os outros já estiveram. Sempre tenha em mente o que você quer da ciência e o que você pode oferecer a ela. Planeje bem onde você quer estar, em termos intelectuais e profissionais, daqui a um, cinco e dez anos, e determine que passos precisa dar para vencer cada etapa até o seu sonho. Pergunte-se ao menos uma vez por semana: minhas atividades estão me colocando mais perto ou mais longe das minhas metas?
A relação orientador-aluno se parece com a relação mestre-aprendiz
Fazer iniciação científica, mestrado ou doutorado em um laboratório não é igual a trabalhar numa empresa ou estudar numa escola. Um orientador é uma mistura de professor e patrão, então a relação com os alunos muitas vezes é confusa para ambas as partes. Um bom aluno é aquele que respeita a hierarquia do grupo de pesquisa, mas sem perder o senso crítico e a iniciativa. O bom aluno nunca aceita verdades prontas sem questionamento, mas também sabe a hora de baixar as orelhas e obedecer o mestre.
A sua formação depende principalmente do quanto você investe em si mesmo
Se você trabalhar duro e respeitar o seu orientador e os seus colegas, pode vir a se tornar um bom cientista. Não espere resultados milagrosos sem sangue, suor e lágrimas. Além disso, a maioria dos bons orientadores investe em cada aluno de maneira proporcional ao quanto ele investe em si mesmo: aqueles que mostram interesse e esforço recebem cada vez mais e mais atenção; os outros vão ficando para trás. Orientador não é babá, confessor ou terapeuta. O trabalho do cientista muitas vezes requer mais do que 40 horas semanais, logo sacrifícios e escolhas são necessários (é claro que tentando manter o equilíbrio com a vida pessoal), especialmente na pós-graduação, a fase crítica da carreira na qual temos que observar a Regra das Dez Mil Horas.
Não reclame da vida, pois há muitos e muitos anos, quando eu comecei nessa brincadeira, as condições para fazer ciência no Brasil eram ainda piores. De qualquer forma, aqui ainda temos muito mais vagas e bolsas para aspirantes a cientista do que em alguns países de Primeiro Mundo, onde a visão é dar chances apenas para quem tem talento e mostra determinação, e não para quem “quer apenas experimentar um pouquinho” e mesmo com mais de 20 anos na cara ainda não sabe o que quer da vida. Por fim, invista também em cursos de inglês, pois dominar a lingua franca do nosso tempo é fundamental, tendo em vista que 90% dos trabalhos científicos são publicados nesse idioma. Você precisa também buscar fluência oral, para conversar com colegas estrangeiros em conferências.
Misturar política e religião com ciência não dá certo
Você pode ter opiniões pessoais sobre assuntos variados e manter quaisquer crenças de natureza política ou religiosa na esfera pessoal, além de seguir as leis do seu país e o código de ética do seu ramo profissional. Mas não misture as suas visões políticas ou religiosas com a sua prática científica, pois isso sempre resulta em má ciência. Além disso, busque sempre a melhor resposta para cada pergunta, independente do resultado final. Às vezes a melhor resposta não é agradável e vai deixar alguém chateado com você.
Leia muito, mas selecione cuidadosamente a literatura
Escolha apenas os melhores livros e artigos, pois a literatura científica é gigantesca e você não terá tempo durante a sua vida para ler todos os trabalhos que saíram na sua área (na verdade, você não terá nem acesso a todos). Além disso, a literatura está cheia de baboseira, então não perca tempo com trabalhos mal-feitos, irrelevantes ou pseudo-científicos (veja um outro artigo sobre a escolha da literatura).  Quanto aos cursos científicos, faça apenas os melhores, porque o mais importante para um cientista é estudar e aprender por conta própria.
Um bom networking é fundamental
A lenda diz que cientistas brilhantes trabalham sozinhos em porões escuros fazendo as mais loucas descobertas. Quem tem um mínimo de experiência na Academia sabe o quanto a realidade está longe disso. Para fazer boa ciência, não apenas hoje em dia, como desde sempre, é preciso interagir com seus pares, ler os trabalhos que eles escrevem, participar de conferências e fazer visitas a outros laboratórios. Um bomnetworking permite não apenas que você tenha acesso em primeira mão a novidades científicas, como também pode alavancar a sua carreira. É frequentando congressos que você torna seus artigos conhecidos; uma coisa alimenta a outra. Além disso, no seu dia a dia, ajude os seus colegas de laboratório e você receberá ajuda quando precisar.
Um projeto de pesquisa só termina após uma boa publicação
Uma boa publicação pode ser um artigo em uma revista científica revisada por pares, um livro ou uma patente, dependendo do foco do seu estudo e dos costumes na sua área. Monografias, TCCs, dissertações e teses, meras formalidades burocráticas, são apenas o começo do fim. E, além de publicar o seu estudo decentemente, você tem que almejar relevância: ele precisa ser lido, citado, usado, aplicado etc.
Se você quiser ser tratado como profissional desde cedo, vá para fora
Apesar de haverem no Brasil pessoas preocupadas com a situação precária dos pós-graduandos, que, mesmo sendo difamadas por quem deveria aplaudi-las, fazem propostas concretas para tentar melhorar as condições de trabalho deles, a mentalidade dominante é retrógrada e avessa a mudanças. Portanto, se você quiser receber um excelente treinamento de cientista e, ao mesmo tempo, ter direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro, aviso prévio etc., vá cursar o seu mestrado ou doutorado fora do Brasil, de preferência nos países ricos da Europa. Na Alemanha, por exemplo, mestrandos e doutorandos têm três opções para se sustentar: (i) ganhar uma bolsa acadêmica de uma agência de fomento governamental, ONG, OI, projeto ou universidade; (ii) receber um contrato de pesquisador (“CLT”) através de uma agência de fomento, projeto ou universidade; (iii) não ganhar nada e terem que manter um emprego paralelo à pós-graduação para pagar as contas. Enquanto o Brasil não acorda para o século XXI e abandona velhas manias, considere seriamente a alternativa de estudar fora.

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